a primeira vez a gente nunca esqueçe

Eu tinha onze anos quando aconteceu. 

Pensei que estivesse sofrendo de alguma doença grave e que meu fim estaria próximo. Não seria um fim assim tão trágico quanto o de Julieta, que se matou por amor. Eu nem tinha um amor naquela época! Era platonicamente apaixonada por Collby o' donnis, e pensei que bonito seria morrer na areia da praia, assim como Dora. Mas bem, não há areia em Brasilia, certo? A gente até encontra por aí esses montes de areia para construção, mas não há nada de romântico em morrer cheirando a xixi de gato. Enfim, pensei que morreria de fato. Vai ver era meu coração sangrando, meu estômago sofrendo por ter comido brigadeiro demais. Comecei a fazer um pequeno testamento: minhas Barbies ficariam com... bom, ninguém, iriam para o túmulo comigo; meus livros poderiam ficar com... no túmulo também; meu diário iria para... o ceu junto comigo, se preciso. Meu cachorro maluco poderia ficar com meus pais... se bem que seria melhor ele ir comigo também. Ninguém gostava muito dele.

Estava quase tudo certo. Mas eu ainda não sabia como eu terminaria: se deitada tragicamente torta em minha cama, ou largada no banheiro, se deitaria pacificamente ou se faria uma pose digna de filmes de horror, como se a morte tivesse sido algo doloroso, terrivelmente doloroso. Além disso, tinha outro problema: meu livro. Eu não podia morrer sem terminá-lo! O que é que ficaria para a posterioridade? Como é que lembrariam de mim? Não basta morrer como a mocinha sofrida, certo? Eu tinha que deixar alguma coisa. Eu tinha que terminar o maldito livro.

Peguei o caderno encapado com recortes e me pus a escrever. Era uma história boba sobre meninas versus meninos, nem me lembro mais. O tal do livro deve estar enfiado em algum lugar do meu guarda-roupa, junto com outros 2 ou 3 três livros inacabados. Um dia, quem sabe, não junto tudo e faço um só. Mas não é disso que eu falava. Falava sobre terminar de escrever o tal do livro. Bom. Comecei a escrever qualquer coisa naquela minha letra horrível, a história tinha que continuar. Meus personagens-filhos tinham que viver, ainda que eu morresse da maneira mais tosca que uma menina de onze anos poderia morrer. Escrevi furiosamente por algumas páginas, até cheguei a esquecer do tal do sangramento, do Collby o 'Donnis, da Julieta, e do meu irmão. Droga. Eu tinha que buscar meu irmão na escolinha. Mas como é que andaria na rua com aquela hemorragia mortal? Papel. Era jeito.

Enrolei o papel, tentei estancar o fluxo de sangue e saí. Me imaginei atravessando uma selva, gravemente ferida, com fome e suja, tentando alcançar sei lá o que, sendo esse sei lá o que qualquer coisa que me manteria viva. Talvez eu morresse ao chegar sei lá onde, mas o importante era não desistir, certo? Os personagens dos meus livros não desistiam. Nunca. Andei por aquelas ruas olhando por todos os lados, olhando para o céu, para as folhas caídas, dizendo meu último adeus mudo. Minhas pernas trêmulas, a fadiga, meu corpo querendo desistir, o incômodo no local da hemorragia. Eu vou morrer. Mas não aqui. Não em cima de cacas de cachorro. Não. Eu preciso chegar à escola, pegar meu irmãozinho, e depois morrer em minha cama. No meu quarto, com meus livros e minhas Barbies. É.

Cheguei em casa, enfim, me tranquei no quarto. Não queria que me vissem nas minhas últimas horas. Porque era isso. O lugar qualquer que eu tinha que chegar não me salvou. Não. Peguei meu irmão no portão e voltei voando para casa. Ou pelo menos me pareceu; não lembro do céu, das folhas no chão, faz cacas de cachorro, não me lembro de nada. Apenas de chegar no portão de casa, mandar meu cachorro sair da frente, deixar meu irmão na sala e correr para a minha cama. Bom, era isso. Eu morreria sem terminar meu livro. Não havia tempo para escolher a pose mais adequada. Eu já estava indo. Partindo dessa pra melhor. Adeus.

“Louanne?”
“Mãe?”
“Por que você ta trancada nesse quarto escuro? O que é isso na sua cama? Sangue?”
“Mãe, acho que eu to morrendo!”
“Você não ta morrendo, sua tonta, você virou mocinha!”
“Virei mocinha? Eu era o que, então?”
“Ai Louanne, você mens-tru-ou”
“E-C-A! Então é isso que é menstruar? Que nojo! E eu pensando que estava morrendo”


Então é isso. Eu não morri. Não era meu coração sangrando com toda a minha tristeza pré-pré-adolescente, não era meu fígado atacado por todo meu drama. Nada de hemorragia interna por comer brigadeiro demais. Eu apenas virei mocinha. Oh, Julieta! Quem me dera ter sua sorte! Coisa mais simplória essa minha vida! Virar mocinha. Veja só! Dez anos depois eu afirmo: feliz a Dora que morreu nas areias de Salvador, nos braços de Pedro Bala, feliz a Dora que se foi antes de saber o que era TPM!

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